quinta-feira, 20 de novembro de 2014

As consequências da queda da URSS para Cuba - parte 1



O texto a seguir é a primeira parte de um artigo maior, que irá focar-se nos diversos aspectos (político, ideológico, cultural) dos anos de coexistência de Cuba com a URSS, sobretudo sobre como se dava essa relação no campo econômico e como a situação de Cuba foi abalada com o fim dessa relação, por consequência da queda da URSS e do Campo Socialista.

Para compreender esse período econômico, entretanto, devemos, antes, fazer uma breve análise sobre a Cuba pré-revolucionária. A primeira parte do artigo abordará esse período da economia cubana. 

Para a segunda parte do artigo, clique aqui.
  

1. A Cuba pré-revolucionária
 


No começo da colonização espanhola, que começou no final do século XV, rapidamente esgota-se o pouco ouro que tinha Cuba e os índios são rapidamente dizimados pelos europeus.1

Rapidamente, também, reparte-se a terra cubana, destinada em sua maior parte para a criação de gado. A terra, a princípio do rei espanhol, tem seus beneficiários distribuídos pelos ayuntamientos, que eram órgãos municipais executivos espanhóis. Eram então concedidos por meio de mercedes aos conquistadores, ou seja, lhes era dado o direito do usufruto da terra. Muitas vezes, esse processo de conceder terras  não se efetivava, resumia-se a ser estritamente formal, sem ocorrer uma ocupação ou uso da terra. Isso se devia às grandes extensões de terras (de difícil administração, se consideradas integralmente), abandono dos colonizadores ou, ainda, falta de herdeiros. Isso fez que fossem, posteriormente, “mercendadas” mais terras, inclusive no interior das fazendas já concedidas, mas abandonadas.

Essas grandes fazendas voltadas a criação de gado eram divididas em 3 partes: “sabanas”, “quemados” e “montes”. A primeira parte era voltada para a pecuária, a segunda, eram terras disponibilizadas para algum cultivo ou para o pastoreio, e os “montes” eram as florestas que provinham madeira e frutas. Dentro dessas fazendas agrupavam-se muitos peões, formando núcleos populacionais de trabalhadores individuais, ocasionais, ou seja, não-fixos. Há de se lembrar que existia também o cultivo de pequenas roças ao redor da cidade, dedicadas apenas para a alimentação da população mais pobre.

Em contraposição à pecuária e à propriedade que a mantinha, começa o ascenso do cultivo do tabaco, nos fins do século XVI. O tabaco necessitava de uma estrutura radicalmente diferente da necessária para a pecuária: são necessárias terras planas, de pequena extensão e próximas de rios, chamadas de vegas. Seu cultivo é intensivo e se dá ou em minifúndios, nos limites das cidades, ou em pequenas partes arrendadas por vegueros, dentro das grandes propriedades, aglutinando a população de uma região; enquanto que as grandes fazendas de criação de gado espalhavam tal população. Durante o século XVII, o tabaco, já espalhado por toda a ilha, é o principal artigo de exportação. É tal sua importância que o período de grande exportação desse artigo fica conhecido como Edad de oro do tabaco. Por essa importância, a Coroa espanhola institui, em 1717, o Estanco, uma política (que inclusive engendrou revoltas por parte dos vegueros, duramente reprimidos) de impostos às vegas, com a qual a Coroa, também, buscava monopolizar sua exportação, que era escoada muitas vezes por meio de contrabando. Muito lentamente, simultaneamente, tem início o cultivo de cana em XVI, a princípio com o objetivo de alimentação pela garapa. Os primeiros engenhos começam apenas no século XVIII. O cultivo da cana-de-açúcar também era um contraponto à antiga propriedade pecuária, mas não era produzido em minifúndios, como o tabaco; ao invés disso, precisava de grandes extensões de terra, acelerando, assim, a devastação de “montes” para dar cabo ao plantio. O progresso lento dessa cultura de cana se deve principalmente aos altos custos necessários para mantê-la, devido à grande infra-estrutura necessária e aos grandes preços da mão-de-obra escrava importada.

Acontece, então, progressivamente, a decadência da forma de propriedade do rei, o realengo (reguengos), com o crescimento demográfico e a disputa de terras, que se fazia em meio à confusão de milhares de pedidos de títulos para o usufruto da terra. Dessa forma, a administração central viu-se incapacitada, sendo seu papel exercido pelos ayuntamientos locais.

No decorrer desse tempo como colônia, é importante lembrar que Cuba sofreu diversas invasões, tanto de piratas quanto de outros países, mas, de modo geral, permaneceu na grande maioria do tempo sob domínio espanhol. Apesar desse domínio, criam-se laços entre Cuba e as Treze Colônias. A interação entre Cuba e EUA vai progredindo em relação ao comércio e servirá como impulso para uma maior dominação dessa nação sobre Cuba posteriormente.

No século XIX, os espanhóis, no entanto, continuam exercendo o domínio político estrangeiro sobre Cuba, continuando sua longa tradição de uma economia marcada em grande parte pelo caráter colonial, ou semi-colonial.2 A maioria das riquezas cubanas continuava vindo da terra, utilizada para uma agricultura comercial, na qual se cultivava café, tabaco, em alguns momentos algodão, mas, principalmente, no século XIX, a cana-de-açúcar. Como colônia da Espanha, já em 1861, a ilha possuía 1365 engenhos de açúcar.3

Nessa época, começa a dissolver-se o regime escravista (que coexistia com o trabalho assalariado), sendo cada vez mais difícil manter-se frente às restrições da Inglaterra,4 que dificultavam a manutenção desse sistema de trabalho. Esse obstáculo à perpetuação dessa prática é imposto pela Inglaterra não por acaso: ela mantinha propriedades em Cuba por meio da Companhia das Índias Ocidentais, nas quais a mão-de-obra era baseada no trabalho assalariado “livre”, e planejava, com as restrições à escravidão, minar as propriedades espanholas que dependiam da mão-de-obra escrava.            

O domínio espanhol perdurará até 1895 e, logo após a disputa imperialista representada pela guerra hispano-americana, o movimento independentista cubano, sob ocupação militar dos Estados Unidos em 1901, é obrigado a aceitar a famosa Emenda Platt em sua constituição. Tal emenda estipulava a desocupação militar do território cubano pelos EUA, sob 7 condições, que submetiam Cuba à dominação americana. Uma parte da ementa, que deixa isso evidente, firmava:

“Que todos os atos realizados pelos Estados Unidos em Cuba durante sua ocupação militar seriam válidos, ratificados, e que todos os direitos legalmente adquiridos sejam mantidos e protegidos.” 5

Então, 5 anos mais tarde, sob uma conjuntura política mais “tranquila” e pacífica, constata-se, não por acaso, um aumento no capital investido de tal país em Cuba: se de 1898 a 1902 foi investido 30 milhões de dólares, de 1902 a 1906, essa cifra subiu para 160 milhões.6

Apesar desse gigantesco investimento yanqui, o capital americano não era ainda o capital hegemônico em Cuba, havia os capitais franceses, alemães e ingleses. Os capitais ingleses e americanos, no entanto, eram os maiores, como demonstram os dados relativos aos investimentos estrangeiros em 1913-1914: enquanto os Estados Unidos investiam 215 milhões de dólares, os ingleses investiam 216 milhões, dos quais a maior parte era investida em terras (para o plantio e extração da cana), centrais açucareiras e engenhos (para o processamento da cana, transformando-a em açúcar), ferrovias (exclusivamente para o transporte do açúcar, levando-o até a costa) e em portos (para o transporte do açúcar, completando o ciclo do investimento dos capitais).7

Todo esse investimento era, evidentemente, voltado à rapinagem, à exploração dos recursos naturais, feita à base de suor e sangue do trabalhador cubano, que vivia de maneira deplorável: a expectativa de vida em 1920, por exemplo, era de 37,4 anos; em 1907, 59,1% de toda a população era analfabeta; havia em toda a ilha 55 hospitais, sendo que a população no mesmo ano era de dois milhões de habitantes.8

Observa-se, também, o aumento da importância da cana-de-açúcar na economia nacional do século XIX para o XX. Se antes o açúcar era essencial, no começo do século XX ele se torna a pedra angular da economia, que depende agora quase que exclusivamente de tal produto. Se analisarmos a porcentagem da receita nacional cubana do ano 1907 até o ano de 1930 representada pelo valor da safra de cana-de-açúcar e fizermos uma média, obteremos o resultado de 33,64%.9 Ou seja, 33,64% de toda receita cubana média entre os anos 1907 e 1930 é constituída apenas pelo valor da safra da cana-de-açúcar, que era processada e exportada.

Eis porque sua economia era tão frágil, dependente de importações e vulnerável a uma simples conjuntura não favorável de preços internacionais do açúcar. A crise de 1929, que abalou violentamente a economia dos EUA, teve consequências catastróficas em Cuba: no período de 1925 a 1933, a receita nacional cai 58,5%, tendo caído em 10% a participação do açúcar no valor total das exportações10. No entanto, para o capital financeiro estadunidense, os efeitos não eram tão “catastróficos”: o país aproveitava esses períodos para aumentar seu domínio sobre a economia cubana, por exemplo, com as privatizações dos bancos nacionais, que, sem a “sustentação” de grandes matrizes canavieiras, sucumbiam às crises, levando a que, em 1931, 97,9% do capital bancário fosse estrangeiro.11 A economia cubana estava completamente submetida a uma burguesia nacional e ao latifúndio, lacaios da oligarquia financeira norte americana. Desse modo, ocupando a agricultura somente com a cana-de-açúcar e carente no campo industrial, Cuba era obrigada a importar dos EUA diversos produtos, de alimentos a outros variados produtos industrializados, rendendo mais dividendos aos rentistas estadunidenses.

É possível de se observar que o rendimento dos capitais estrangeiros em Cuba cresceu vertiginosamente na época da Primeira Guerra Mundial, com preços do açúcar muito favoráveis, o que estimulou um maior investimento estadunidense, que culminou em 1927 num total de 1 bilhão e 140 milhões do dólares, dos quais metade se encontrava no setor açucareiro.12 Depois da grande depressão, se evidencia um expressivo impacto na economia cubana, que só irá recuperar-se na década de 1950, quando os oligarcas nacionais passam a possuir maior domínio do setor açucareiro. Apesar disso, as melhores e mais modernas usinas ficam ainda nas mãos do domínio estrangeiro direto, que também mantém controle sobre outros diversos setores da economia cubana. No campo do fornecimento de energia elétrica, um subsidiário do monopólio Electric Bond and Share controlava 90% do serviço público de eletricidade. No campo farmacêutico, atuava Schering Pharmaceutical of Cuba: Abbot Laboratories of Cuba, no campo da comunicação, Cuban Telephone Company, na mineração, Cuban Nickel Company, na eletrônica, General Electric, no processamento de combustível, Esso Company, no comércio, F.W Woolworth Company y Sears Company, etc. A maior parte da economia estava nas mãos estadunidenses.

Crises e instabilidades fazem que a situação do trabalhador piore ainda mais, reduzindo salários e aumentando o custo de vida, com a elevação dos preços dos alimentos importados. O cubano, no fim das contas, em 1956, vivia, em média, com 6 dólares por semana, morando em bohíos (choupanas), onde viviam enfurnadas mais de 10 pessoas, em sua maioria sem luz, sem água, sem sistema de esgoto.13 Um trecho do texto Contradições e irracionalidade da Cuba pré-revolucionária mostra, ainda, outros dados relativos a Cuba nos anos 50:

“(...) as taxas de mortalidade infantil e materna eram ligeiramente inferiores a 60% e 12%; 31% dos operários agrícolas eram (ou tinham sido) portadores de paludismo e 14% eram tuberculosos; havia um médico por 1067 habitantes, 2 em cada 3 exerciam a profissão em Havana; os preços das consultas atingiam 10 a 15 pesos; mais de 50% dos assalariados urbanos ganhava menos de 75 pesos por mês; um dentista por 3.510 habitantes; uma distribuição da riqueza em que a fatia dos 50% mais pobres recebia 10.8% do rendimento e os 5% mais ricos 26,5% (...)” 14

O trabalhador agrícola, sem emprego na maior parte do ano devido ao caráter sazonal do trabalho com a cana, torna-se miserável e, encontrando-se sem alternativa, vai compor o exército de desempregados: 25% da força de trabalho cubana não encontrava emprego em 1953, taxa alcançada pelos EUA apenas na crise de 1929.15 Outros dados, de 1956, deixam ainda mais evidente a horrível situação da população cubana: 23% da população é analfabeta, das 180 370 crianças matriculadas, somente 4 852 acabam o curso primário e somente 35,1% das crianças frequentam as aulas; apenas 9,1% das casas da zona rural têm luz elétrica, apenas 35,2% de todas as casas do país têm água encanada, 55% das casas em Cuba não têm banheiros.16

Contudo, existiram outros momentos na história de Cuba tão miseráveis para a população quanto esse, sob a ditadura de Batista.

Antes o capital já havia instaurado a sua lógica de maneira firme e segura sob a expressão política do ditador Machado, que esperava fazer a manutenção da ordem vigente implementando uma falsa e secundária industrialização, de modo a manter, predominantemente, a força de trabalho ocupada com a cana ou desempregada, afinal o alto nível de desemprego contribui para a diminuição dos salários médios, algo altamente positivo para o empregador.

Uma forte repressão é condição necessária para manter tal subjugação e tal pobreza. Dentro de um contexto em que essas contradições se acirram, a burguesia recorre, para manter seu domínio, a um grande aparato repressor. Entretanto, tanta repressão e miséria podem engendrar, também, uma violenta ação contra a ordem ditada pelo imperialismo e pela dominação estrangeira; por isso observamos a imensa tradição de lutas, como os movimentos anti-escravagistas (rebelião de escravos nas minas, em 1533 e em 1731 em Santiago de Cuba, Rebelión de Triunvirato, em Matanzas, etc) e independentistas (La Guerra Grande, de 10 anos; La Guerra Chiquita, de 1 ano; La Guerra de Independencia, de 13 anos), que tinham como vanguarda, muitas vezes, uma burguesia nacional que tentava desvencilhar-se dos laços coloniais, em busca de autonomia, arrastando a massa consigo para a luta, com o estimulo ideológico do nacionalismo. Mesmo durante o período republicano, os EUA, de modo a manter sua dominação parasitária sobre Cuba, ocupa-a por uma segunda vez, para garantir seus interesses. Cuba mantém, durante esse período, um efervescente movimento estudantil, que será importante para a consolidação de várias organizações progressistas, como, por exemplo, a Federación de Estudiantes Universitários, que foi importantíssima para a revolução e permanece até hoje. Fidel Castro surgirá diante de todo esse histórico revolucionário e inquieto de Cuba. Se ignorarmos toda essa história de luta, da qual Fidel Castro e o Movimento 26 de Julho são parte, não compreenderemos o processo revolucionário cubano, a Cuba de hoje, assim como o porquê da estima que os cubanos têm por Martí e por sua exemplar história de luta. 

Notas:
1. Houve, porém, resistência. Os cubanos têm orgulho de lembrar a história de Hatuey, que chamam de o “primeiro rebelde da América”: ilustre cacique indígena que desafiou e lutou contra os espanhóis.
2. Por colônia entende-se país não só economicamente subordinado e dependente a outro, mas também formalmente; por semi-colônia entende-se como país economicamente subordinado e dependente a outro, mas não dominado formalmente, pois goza de “liberdade” política.
3. Orlando Valdés Garcia, “La revolución Cubana - premisas económicas y sociales” (A revolução Cubana - premissas econômicas e sociais), p. 27
4. Bill Aberdeen foi uma lei instituída em 1845, no parlamento britânico, que permitia à marinha britânica (que possuía a maior e mais poderosa frota da Terra, naquele momento) prender navios negreiros por todo o Oceano Atlântico, buscando o desestímulo da escravidão e, por consequência, o estímulo à mudança do sistema de trabalho para uma forma assalariada, o que implicava o crescimento dos mercados, para os quais eram escoados os produtos britânicos.
5. Hortensia Pichardo, Documentos para la Historia de Cuba (Documentos para a História de Cuba) apud Orlando Valdés Garcia, op. cit., p. 29
6. Leland H. Jenks, Nuestra colonia de Cuba (Nossa colonia de Cuba), p.165 apud Ibid., p. 31
7. Orlando Valdés Garcia, op.cit., p. 32
8. Cuba. Oficina Nacional del Censo; Olmsted, Victor H. (Victor Hugo), 1853-1925; Gannett, Henry, 1846-1914.  Disponível em: https://archive.org/details/cubapopulationhi00cuba
9. Orlando Valdés Garcia, op.cit., p. 38-39
10. José Luiz Gutierrez, La economia de Cuba socialista (A economia da Cuba socialista) em Economia y Desarrollo (Economia e Desenvolvimento) n° 61, 1981
11. Orlando Valdés Garcia, op. cit., p. 37
12. Julio Riverend, História Económica de Cuba, p. 614
13. Leo Huberman, Anatomia de uma revolução, p. 20
14. Remy Herrera, Contradições e irracionalidade da Cuba pré-revolucionária, p. 4
15. Ibid., p. 24
16. Ibid., p. 22

Equipe do blog Fuzil contra Fuzil