sábado, 24 de janeiro de 2015

As consequências da queda da URSS para Cuba - parte 2



Disponibilizamos aqui a segunda parte do artigo publicado no dia 20 de novembro de 2014, tratando do período de coexistência da URSS com Cuba, em seus distintos aspectos, assim como das consequências da queda da URSS e do Campo Socialista para Cuba.

A primeira parte do artigo dava um breve panorama da história da Cuba pré-revolucionária (pré-1959), enquanto a parte a seguir aborda o período compreendido entre os anos 1959 e 1975, onde Cuba passa a receber o apoio da URSS e do Campo Socialista, passando por um grande desenvolvimento.



2. A época de coexistência com a URSS (entre os anos 1959 e 1975)




1959 – 1963
Logo após o triunfo revolucionário, em 1959, forjado em uma aliança entre os trabalhadores do campo e das cidades, são implementadas várias medidas populares. Baixam-se os preços dos produtos básicos e as tarifas dos serviços públicos, o aluguel é reduzido em 50% (6 de março de 1959), são reduzidas as tarifas elétricas (20 de agosto de 1959), e é tomada uma das medidas mais importantes: a Primeira Lei de Reforma Agrária, implementada pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), que estabelece o limite máximo para todas as propriedades em 30 caballerías (400 hectares).1 Como resultado da aplicação dessa lei, 67% de toda terra cubana é distribuída entre o Estado e os camponeses:2 os latifúndios de cana-de-açúcar tornam-se cooperativas e as terras virgens e usadas anteriormente pelo latifúndio ganadero (de gado), tornam-se granjas del pueblo, estatais;3 40% da terra é estatizada, o que é muito significativo em um país que possui 75% do total de trabalhadores como trabalhadores agrícolas e em que os proprietários que tem mais que 30 caballerías possuem cerca de 73% de toda terra cultivável cubana, representando apenas 9,4% de todos os proprietários do país.4

Devemos lembrar o caráter altamente atrasado de Cuba no período, caracterizada por traços semi-feudais, de escravidão por dívidas, gigantescos latifúndios, assim como tudo isso foi mudado radicalmente, com um setor estatal completamente novo.


Os chamados precaristas compravam os alimentos e as ferramentas com o proprietário da terra e acabavam ficando endividados. Sem condições de pagar suas dívidas, acabavam presos como escravos à propriedade. A prática da aparcería era muito comum e consistia em um proprietário permitir a exploração agrícola de seu terreno em troca de uma porcentagem da produção.5
   
Fidel, quando entrevistado por Gianni Miná, dirá que o período de 1959 a 1960 não era o momento oportuno para declarar o caráter socialista da revolução, mas de consolidar uma estrutura de poder das classes trabalhadoras e que naquela conjuntura já havia sido um grande passo a libertação nacional e patriótica (etapa democratico-popular da revolução), que posteriormente se desenvolveria enquanto revolução socialista.6 A declaração formal do caráter socialista só viria posteriormente, em 1961, mas, com essas medidas democráticas de 1959  e as medidas, já de caráter socialista, do ano seguinte, começam as represálias internas (sabotagem na produção) e externas (cancelamento de crédito, congelamento de contas, descapitalização das indústrias), acirrando, assim, a luta de classes, acelerando o processo revolucionário.7 Em 1960, não só o imperialismo sofrerá um duro golpe, como também o capitalismo em Cuba: mais estatizações aconteceriam. 36 engenhos, a rede bancária inteira, 383 empresas, refinarias de petróleo (6 de agosto de 1960), companhias elétricas, entre outras estruturas, são todas estatizadas. Eis que temos, aproximadamente, o seguinte saldo: 40% da agricultura, 85% da indústria, 80% do setor de construção, 92% do transporte e 50% do comércio a varejo, 100% do comércio maiorista e 100% do setor bancário, passam para as mãos do Estado. Com isso, começa a ocorrer a superação da principal contradição no capitalismo: a apropriação dos capitalistas de tudo que é produzido pela sociedade começa a transformar-se em apropriação da produção por toda a sociedade e as relações de produção se adaptam correspondentemente ao nível das forças produtivas. Concomitantemente ocorre uma gigantesca reestruturação administrativa e as outras gigantescas mudanças feitas em todos os campos da vida cubana: saúde, habitação, escolas, assim como os mecanismos e métodos de implementação das diretrizes econômicas e o meio de implementar essas mudanças se modifica rapidamente.8 Nesse processo, extremamente complexo e importante, é criada, no dia 1 de março de 1960, a JUCEPLAN, a central de planificação da economia:

“Lei num. 757
TÍTULO I
Da Junta Central de Planificação

Artigo 1º. – Cria-se a Junta Central de Planificação do Governo Revolucionário de Cuba encarregada de determinar, orientar, supervisionar e coordenar a política econômica dos diferentes organismos do Estado e das entidades autônomas, assim como de sinalizar as normas gerais orientadoras da ação do setor privado. (...)” 9

Cuba, ao mesmo tempo que distancia-se dos EUA, como principais consumidores de seu açúcar, começa a estreitar seus laços com a URSS. Em 1960 começa um acordo que dará sequência a muitos outros acordos comerciais relativos à venda do açúcar10 e o acordo de fornecimento de crédito para Cuba, usado para o incremento técnico da produção. É importante ter em mente que durante toda a relação entre a URSS e Cuba, Cuba sempre gozou de uma troca comercial muito favorável. Em 1961, começa-se a delinear a estratégia econômica com a primeira planificação, cujos objetivos são a substituição de importações e a consolidação de uma maior independência econômica, uma rápida industrialização. Uma série de medidas estavam em andamento desde a tomada do poder. Essas medidas diziam respeito à infra-estrutura básica para a população e, com a construção de habitações, de escolas, de hospitais, a mão-de-obra desempregada começa a ser absorvida rapidamente pelo crescimento que acompanhou tudo isso: de 1959 a 1960 o índice de desemprego cai 40%.11 No campo, até então esquecido, foram construídas muitas escolas e hospitais, assim como deu-se o amparo ao pequeno agricultor com a ANAP (Asociación Nacional de Agricultores Pequeños de Cuba), que representa as sociedades agropecuárias. Foi também desenvolvido um projeto de cooperativas, que eram consideradas formas de organização de propriedade apenas transitórias e que, eventualmente, deveriam tornar-se estatais mediante estímulos (aposentadoria, melhores condições de vida, vantagens técnicas, entre outros).

Todas essas ações representaram um grande aumento no salário real dos trabalhadores, o que engendrou uma demanda de produtos de primeira ordem muito maior. Mas eis que as sanções a Cuba são reforçadas pelos EUA em 1961, o que acaba impossibilitando a importação necessária de bens de capital e forçando um racionamento. A diretriz de industrialização exigiu importações caras e o cultivo maior de artigos de primeira necessidade. No campo, onde se buscou uma produção mais diversificada, além da monocultura da cana, são demolidos mais de 200 mil hectares de canaviais, o que irá engendrar uma queda na produção de cana de 6,8 milhões para 3,8 milhões de toneladas de açúcar “cru” de 1961 a 1963, diminuindo a capacidade de exportação do açúcar.12 A economia cubana, depois de séculos de colonização, encontrava-se super desenvolvida no setor açucareiro e atrofiada em todos os outros setores, de tal maneira que uma mudança tão radical e repentina não era possível. Tal diretriz ofereceu maus resultados com a queda de 10% nas exportações e 49,5% de aumento das importações,13 sendo ineficiente a curto prazo devido ao grande atraso econômico do país, levando a que se optasse por uma via diferenciada, mais ligada a setores primários, como à agricultura, e às exportações de açúcar (que seria escoado para a URSS e para os países socialistas), criando assim as bases para então, depois, com mais recursos, desenvolver um plano mais amplo de industrialização e incremento técnico na produção. Diante do embargo econômico imposto a Cuba, há uma aproximação ainda maior com o bloco soviético: firma-se um acordo, a partir do ano de 1963, que garante a Cuba preços estáveis do açúcar, acima dos do mercado mundial, e que, posteriormente, levaria ao pagamento do açúcar cubano em maior parte com mercadorias (80%) e apenas 20% com dinheiro.14


No dia 3 de outubro de 1963, entra em vigor a Segunda Lei de Reforma Agrária, que acaba de uma vez por todas com o latifúndio. Se antes eram nacionalizadas todas as terras que tivessem mais de 30 caballerías, agora são estatizadas todas que possuam mais que 5 caballerías (67 hectares), levando a que o setor estatal representasse agora 70% da agricultura cubana.15 Eis um pequeno trecho da Segunda Lei de Reforma Agrária:

“(...)

DADO QUE: Existem fazendas maiores de sessenta e sete hectares e dez áreas, (cinco caballerías) que proprietários ou possuidores burgueses retêm em suas mãos em detrimento dos interesses do povo trabalhador, quer entravando a produção de alimentos para a população, especulando com os produtos ou utilizando com fins anti-sociais e contra-revolucionários as elevadas receitas que obtém da exploração do trabalho.

DADO QUE: A existência dessa burguesia rural é incompatível com os interesses e os fins da Revolução Socialista.

(...)

POR CONSEGUINTE: No uso das faculdades que lhe confere a Lei Fundamental da República, o Conselho de Ministros resolve ditar a seguinte.

(...)” 16

Os principais consumidores do açúcar cubano, que possibilitarão essa política, serão a URSS e os outros países socialistas, que também colaboraram com crédito, numa das cooperações mais substanciais entre Cuba e os outros países socialistas, totalizando de 357 milhões de dólares fornecidos entre 1961 e 1962, que tinham como objetivo o desenvolvimento industrial, a compra de máquinas, estaleiros, equipamentos, entre outros fins.


Contradições e irracionalidades da Cuba pré-revolucionária de Remy Herrera p. 7-8

Nesse período, já é possível notar a grande diferença da época pré-revolucionária em Cuba, o país havia mudado radicalmente, da água para o vinho. De 59 a 63, houve um crescimento anual do produto material de 3,6%; 17 na área da saúde, priorizou-se a medicina preventiva sobre a curativa, foram construídos 52 hospitais (de 1958 a 1963), aumentou-se a quantidade de leitos hospitalares de 21.780 leitos para 39.690, foram feitas extensas campanhas de vacinação; nesse mesmo período, foram construídas 85.000 habitações; no campo da educação, as matrículas crescem 80%, são construídas 6.280 escolas, as creches são duplicadas, o analfabetismo é erradicado em 1961 com as famosas campanhas de alfabetização e mansões abandonadas pela burguesia cubana são usadas como escolas, assim como os antigos quartéis do exército cubano.18



Um trecho do ótimo texto Contradições e Irracionalidades da Cuba pré-revolucionária demonstra mais aspectos dessas mudanças:

“O coeficiente de Gini, calculado em 0,55 em 1953-58, tinha já caído a 0,35 em 1962. Nessa data a fração dos 40% mais pobres na população tinham quase triplicado a sua parte no rendimento nacional em relação ao decênio anterior (6% em 1953, 17% em 1962), enquanto a dos 10% mais ricos tinha sido reduzida de 40% (de 39% para 23%). Alguns meses tinham bastado a Cuba para se tornar o país mais igualitário do hemisfério ocidental, incluindo Estados Unidos e Canadá.” 19 

1963 – 1975
A Segunda Lei de Reforma Agrária vai ser de extrema importância para a mudança de estratégia econômica em Cuba, que vai ser focada na produção de açúcar (não por acaso o ano de 1965 é considerado “o ano da agricultura”) e em outras exportações (tabaco, níquel, entre outros). É pensando no incremento técnico da produção de cana-de-açúcar (tornando necessárias importações de bens de produção agrícola) que pretende-se acabar com o déficit comercial20 e em uma maior aproximação com a URSS que se estabelecem metas que visam o crescimento paulatino da produção de açúcar de 1963 até o ponto culminante de 1970, no qual a meta de produção é de 10 milhões de toneladas de cana, o que representa um aumento produtivo de 150% em relação a 1963.21

A cooperação com a URSS não se restringia à exportação de açúcar. Em 1965, por exemplo, a URSS envia não só jovens da Komsomol (juventude comunista soviética) para ajudar nas colheitas de cana e intercambiar experiências com os jovens cubanos, como envia também “alzadoras”, colheitadeiras de cana de açúcar, com as quais vêm técnicos especializados no funcionamento dessas máquinas, tendo como objetivo observá-las e aperfeiçoá-las.22

Hospital General Vladimir Ilich Lenin


Outra cooperação com a URSS se reflete no campo da saúde, como, por exemplo, na construção do hospital policlínico V.I. Lenin, inaugurado no dia 7 de novembro de 1965, que se encontra na Av. Lenin No. 2, no município de Holguín, capital da província de mesmo nome.

O comércio cubano, nessa época, também vai além da URSS: há interação significativa com a China, com quem Cuba, em 1964, estreita seus laços, aceitando um convênio comercial para 1965/1970, que forneceria a Cuba arroz, soja, azeite, carne em conserva, papel, tecidos, máquinas, produtos químicos, em troca de açúcar cru, sínter de níquel, concentrados de cobre, entre outros produtos.23

No entanto, quando finalmente chegou-se ao ano de 1970, Cuba não havia alcançado a meta de 10 milhões de toneladas. Ao invés disso, tinha-se alcançado “apenas” 8,5 milhões de toneladas, um recorde que permanece até os dias de hoje.20


Isso se deve a muitos fatores diferentes. O maior obstáculo foi a grande migração do campo para a cidade, do “oriente” para o “ocidente”, da maioria das cidades e vilarejos onde a atividade econômica predominante é a agricultura para a “cidade grande”, para Havana, capital e portuária, onde concentrou-se o desenvolvimento (é interessante observar que ainda hoje, em diferente escala, ocorre essa migração). Tal migração causou a falta de mão-de-obra no campo: o trabalho no campo era depreciado e considerado pesado sob o escaldante sol caribenho. As medidas do governo cubano para compensar isso foram as campanhas que promoviam o trabalho voluntário, nas quais é impossível esquecer a emblemática presença do Che nas lavouras de cana-de-açúcar. Mas nem o Che nem todos os voluntários juntos puderam suprir essa falta de mão-de-obra nesse setor.

Che, cortando cana-de-açúcar.

Além disso, uma série de desajustes na planificação acarretou na diminuição da produtividade e otimização dos recursos, assim como em indisciplina. Isso levou a que houvesse um excesso de moeda circulante, o que, por sua vez, reduzia a efetividade dos incentivos materiais e causava mais indisciplina. A redução da produção voltava a acarretar em um excesso de moeda circulante. Esses desajustes na planificação, entretanto, foram corrigidos posteriormente.24

De 1964 a 1968, houve uma diminuição no preço do açúcar. Em 1963, o preço de uma libra (453 gramas) era de 8,34 centavos de dólar; no ano seguinte, 5,77; em 1965, 2,08; em 1966, 1,81; em 1967, 1,92 e, em 1968, 1,90; só começando a ascender novamente no ano seguinte (com o preço de 3,2 centavos de dólar). Embora o preço pago pela URSS fosse acima do mercado25 e fixado, a exportação soviética compunha cerca de 40% a 50% da exportação total, ficando a outra parte vulnerável às flutuações dos preços do mercado mundial, que acabaram prejudicando Cuba. As secas nesse período, a mecanização insuficiente, assim como a coexistência de distintos sistemas de planificação econômica, que causou duplicações nas análises econômicas e desajustes,26 complicaram ainda mais a situação. Embora essa confluência de fatores fizesse com que a safra de 1970 fosse fracassada de acordo com a meta proposta, diminuiu-se o déficit comercial.

É preciso lembrar que todas essas gigantescas mudanças no campo econômico ocorreram em meio a grandes turbulências econômicas, políticas e inclusive militares. Cuba encontrava-se no centro de uma possível 3ª guerra mundial, nuclear, na Crise dos Mísseis, além de ter, um ano antes, seu território invadido,27 de modo que no primeiro congresso do PCC (Partido Comunista de Cuba), em 1975, foi assinalada a relação do governo com a economia, perante esses tempos difíceis, da seguinte forma:

“É preciso assinalar que o trabalho econômico não ocupou o centro da atenção durante os primeiros dez anos. Neste primeiro período da Revolução, a sobrevivência diante da subversão imperialista, as agressões militares e o implacável bloqueio econômico, ocuparam o esforço principal da nação. Durante anos tivemos de manter mais de 300 mil homens em armas para defender o país.” 28

Cuba é invadida em 1961, pela Baía dos Porcos no dia 17 de abril.

Com um paulatino crescimento anual da taxa média do produto material de 5,3% (de 1963 a 1970, a preços constantes) e um crescimento do Produto Social Global (PSG)18 nesse período de 51,8%, em uma taxa média anual de 6,1%, continuam os avanços sociais: de 1963 a 1970, constroem-se 44.000 casas e mais 76 hospitais.29

Dos anos 1970 até 1972, acontecem várias reestruturações no sistema bancário, no sistema contábil; é instituído um novo sistema de preços, de orçamento estatal; é feita a criação de novos organismos estatais e também a elaboração de uma metodologia para a planificação, assim como um novo sistema de direção e planificação da economia, baseada no autofinanciamento e em alguns mecanismos de mercado, de modo a integrar, em 1972, o COMECON (Conselho de Assistência Econômica Mútua). A economia de Cuba baseava-se basicamente na produção de açúcar,30 esse era o seu principal pilar econômico, que seria sua especialização na estabelecida divisão socialista internacional do trabalho que vigorava na URSS, por meio do COMECON, na qual cada país era mais ou menos especializado em um setor ou produto e era ligado a economia global do bloco, de modo a fazer com que as relações econômicas entre os países socialistas deixassem de ser apenas bilaterais e se tornassem-se multilaterais, organizando-se e planificando-se como um só país.31 Também foram feitos vários programas conjuntos de produção de níquel, máquinas, celulose e papel, a partir do bagaço da cana, por meio do COMECON, que também facilitou a Cuba a obtenção de insumos.

As safras de 1974 e de 1975 são, respectivamente, de 5,9 e de 6,3 toneladas, rendendo muito por causa dos altos preços do ano (ver no Cuadro 2, exposto acima), que acabam por favorecer um grande crescimento de 1970 para 1975, cujo aumento do PSG foi de 52,5%, em uma taxa média de crescimento anual da 8,8%.32 O setor da construção cresce 19% em 1974, contribuindo para a infra-estrutura da ilha e os racionamentos instituídos em 1961 vão, paulatinamente, deixando de existir (há maior disponibilidade de cigarros, bebidas, entre outros produtos).

No primeiro congresso do PCC, em 1975, desenvolve-se o plano para o quinquênio de 1976-1980 e começa, também, o processo de institucionalização do Estado socialista. De modo geral, assentam-se as bases da infra-estrutura e da agropecuária, conjuntamente com uma renda estável advinda da exportação de açúcar aos países do COMECON, para depois levar a cabo uma industrialização mais intensa.

É interessante pensar que essa maior ênfase e prioridade dada à indústria primária no período de 1963 até 1975 (no caso de Cuba: açúcar, níquel e as frutas cítricas), cuja produção seria escoada em maior parte para o bloco socialista, demonstra um recurso com o qual a própria URSS não contou, pelo contexto diferenciado, em relação à ilha caribenha, de seu momento após a tomada do poder. Depois da Revolução de Outubro e de uma sangrenta guerra civil, seguida de más colheitas,33 a nascente república socialista tratou de industrializar-se, possibilitando as bases materiais para sua população; teve que pagar custosos salários para a mão-de-obra especializada estrangeira, admitir a pequena produção mercantil, o pequeno comercio e o pequeno-burguês em vastas áreas atrasadas pela Rússia e demais repúblicas socialistas, afinal, o nascente Estado ainda não possuía os meios de suprir todas as necessidades materiais da sociedade e, apesar de ter os meios de produção estratégicos e a indústria de base em suas mãos, não contava nem imaginava qualquer apoio de fora.34 Diferentemente de Cuba, que não precisaria passar esse crucial período de transição sozinha, mas contando com a presença e apoio da potência industrial que era a URSS, que podia prover as bases materiais necessárias para o país, acelerando, de certa forma, uma etapa no desenvolvimento das forças produtivas cubanas; a URSS não poderia acelerar essa etapa de seu desenvolvimento industrial, sem a necessidade, por exemplo, de haver uma pequena burguesia.35 Lenin escrevia em 1919:

“Na sociedade comunista o campesinato médio só estará do nosso lado quando aliviarmos e melhoramos as condições econômicas de sua vida. Se amanhã pudéssemos dar 100 000 tratores de primeira qualidade, fornecer-lhes gasolina, fornecer-lhes condutores (sabeis bem por agora isto é uma fantasia), o camponês médio diria: "Sou pela comuna." ” 36

O contexto específico da guerra civil na Rússia não deixa de invalidar a seguinte questão: se existem, de fato, os meios materiais para contar com e se aproximar dos camponeses, será mais fácil e se estará mais próximo de ir na direção da propriedade socialista, coletivizada. A NEP (Nova Política Econômica) teve, também, um papel central na capitalização da indústria soviética, a partir do capitalismo de Estado e de acordos e negócios com empresas estrangeiras, mantendo sempre a base da indústria sobre as mãos do Estado soviético. Fidel, ao ser perguntado em relação a quais erros ele não repetiria, referentes à economia, respondeu:
   
“Acredito que em dado momento fomos excessivamente ambiciosos e quisemos pular etapas. Quisemos pular etapas da construção do socialismo, e aspirávamos, como disse Marx, referindo-se à Comuna de Paris, conquistar o céu por assalto. Queríamos quase que construir imediatamente uma sociedade comunista, quando faltava um desenvolvimento das forças produtivas para a construção da sociedade comunista, faltava uma fase em que você tinha que aplicar os princípios da distribuição socialista, já estabelecidos por Marx. Ele propunha que no socialismo cada qual devia contribuir conforme sua capacidade e receber conforme seu trabalho, isto é, conforme a quantidade e a qualidade do trabalho. Nós passamos por cima um pouco essa etapa. Acredito que, começando novamente, dispensaríamos esses erros.” 37


1. Informe al primer congreso del Partido Comunista de Cuba, 1975, p. 10
Disponível em:


2. José Luiz Gutierrez, “La economia de Cuba socialista” (A economia da Cuba socialista) em Economia y Desarrollo (Economia e Desenvolvimento) n° 61, 1981, p. 125

3. Armando Nova González, “El Modelo Agrícola y Los Lineamientos de La Política Económica y Social en Cuba” (O Modelo Agrícola e a Linha da Política Econômica e Social em Cuba), Editorial de Ciencias Sociales, Habana, 2013, p. 116

4. María de los A. Arias Guevara, “Cuba: reforma y transformación agraria. La crisis de los noventa y el proceso de desestatalización de la agricultura” (Cuba: reforma e transformação agrária. A crise dos noventa e o processo de desestatização da agricultura), Revista IDeAS: Interfaces em desenvolvimento agricultura e sociedade, p. 11. Disponível em: dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4059613.pdf, acessado em 25 de janeiro de 2015.

5. Ibid, p. 11

6. Encuentro con Fidel, Oficina de Publicaciones del Consejo de Estado, la Habana, 1987. Entrevista realizada por Gianni Miná, p. 173

7. Olga Ester Torres R., “El desarrollo de la economía cubana a partir de 1959” (O desenvolvimento da economia cubana a partir de 1959), p. 286

8. Jesús M. García Molina, “La economía cubana desde el siglo XVI al XX: del colonialismo al socialismo con mercado”, CEPAL, p. 23

9. José Bell, Delia Luisa López e Tania Caram, “Documentos de la revolución cubana, 1960”, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2007, p. 39

10. Olga Ester Torres R, op.cit.

 “O convenio comercial assinado com a União Soviética em janeiro de 1960 estipulou a compra de 425 000 toneladas de açúcar nesse ano e um milhão de toneladas anuais durante os seguintes quatro anos, de acordo com os preços do mercado mundial. Entretanto, em meados de um ano, diante do cancelamento da cota de açúcar cubano no mercado estadunidense, a URSS comprometeu-se a comprar de Cuba, pelo preço do mercado mundial, o mesmo volume de açúcar que os Estados Unidos tinham deixado de adquirir. Pelo final de 1960, assinou-se um novo acordo, pelo qual os países socialistas acordaram comprar 4 milhões de toneladas, por pouco mais de 4 centavos de dólar a libra (preço superior ao do mercado mundial). Em maio de 1963, diante do aumento de preços no livre mercado, a União Soviética elevou seu pagamento a 6,11 centavos por libra, preço que foi mantido até 1972. Nestes anos, a União Soviética pagou suas compras principalmente com mercadorias e pouco menos de 20% com moedas de livre câmbio.”

11. José Luiz Gutierrez, op. cit., p. 127

12. Oscar Zannetti Lecuona, “Economía azucarera cubana. Estudios históricos.” (Economia açucareira cubana. Estudos históricos.), Editorial de Ciencias Sociales, la Habana, 2009, p. 233

13. Jesús M. García Molina, op. cit., p. 24

“Na troca comercial de bens notou-se como o superávit de 28 milhões de pesos em 1960 transformou-se em um déficit de 322 milhões em 1963, por consequência de uma queda das exportações (–10,4%) e de um aumento das importações (49,5%).”

14. O preço pago pela URSS, do ano de 1963 até 1972, foi de 6,11 centavos por libra, enquanto, no mesmo período, o preço do açúcar no mercado mundial era de 4 centavos por libra, variando de 1,81 em 1966 a 7,2 em 1972. Após esse período, no geral, os preços pagos pelos soviéticos continuaram acima dos preços do mercado mundial, em valores muito acima da taxa de 6,11 centavos por libra.

15. Armando Nova González, op. cit., p. 115

16. Ley de Reforma Agraria, 3 de Octubre de 1963. Disponível em:

17. Produto material é o valor bruto de toda a produção agropecuária, construção e indústria.

18. Olga Ester Torres R., op. cit., p. 294

19. Remy Herrera, “Contradições e irracionalidade da Cuba pré-revolucionária”, p. 4
Disponível em http://www.odiario.info/b2-img/remcub.pdf, acessado em 25 de janeiro de 2015.

20. A maior parte do comércio seria feito com países socialistas. Em 1965, 20% do açúcar era vendido para países capitalistas, 46% era vendido para a URSS (que comprava sempre com preços acima do mercado) e 33% era vendido para outros países socialistas (com destaque da China).

Olga Ester Torres R., op.cit., p.292

21. Ibid, p. 289

22. José Bell, Delia Luisa López e Tania Caram, “Documentos de la revolución cubana, 1965”, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2013, p. 224-245

 “Deve levar-se em consideração que para a indústria soviética se colocava por primeira vez esse problema, se colocava por primeira vez o problema da construção de uma “alzadora”. E, entretanto, já com essas “alzadoras” há operários que tem passado das 50000 arrobas em um dia.

O primeiro ano não foram tão produtivas; nossos operários ainda não tinham aprendido a lidar bem com elas. Mas, já neste ano, foram muito mais produtivas.”

23. Ibid, p. 217-219

24. Olga Ester Torres R., op. cit., p. 293

25. Os únicos anos nos quais a URSS pagou menos do que o preço de mercado foram 1963, 1972 e 1974.

26. Em Cuba, nos anos 60, coexistiram duas formas de planificação econômica: o Cálculo Econômico e o Sistema Orçamentário de Financiamento. O primeiro, utilizado em todo o bloco soviético, reconhecia as empresas como autônomas, financiadas pelo sistema bancário, que, por sua vez, era controlado pelo órgão planificador. O Sistema Orçamentário de Financiamento, por sua vez, propunha que as empresas fossem financiadas por um Orçamento Nacional, ao invés de serem financiadas pelo sistema bancário, e admite, também, não cada fábrica separadamente, mas um conglomerado delas, em relação ao setor produtivo semelhante, sendo seu critério de desempenho a produtividade, diferentemente do Cálculo Econômico, no qual o critério era a lucratividade. Durante esse período, a disputa entre esses dois modos de planificação econômica foi amplamente debatida: por um lado, Che Guevara defendia o Sistema Orçamentário de Financiamento e, por outro, os economistas mais próximos ao sistema soviético defendiam o Calculo Econômico. Na época, o Cálculo Econômico foi utilizado principalmente para o comércio exterior, enquanto o Sistema Orçamentário de Financiamento foi utilizado principalmente no setor industrial.

27. Esse episódio, de invasão do território cubano, ocorrido de 17 a 19 de abril de 1961 leva o nome de “Invasão da Baía dos Porcos”; foi organizado pelos Estados Unidos e executado por mercenários e traidores cubanos, que haviam fugido na época da Revolução. Cuba conseguiu defender seu território e trocou 1113 prisioneiros capturados por remédios e comida.

28. Informe al primer congreso del Partido Comunista de Cuba, 1975, p. 17

29. Produto Social Global é um índice que mede o produto bruto em países de economia planificada.

30. Olga Ester Torres R., op. cit., p. 294

José Bell, Delia Luisa López e Tania Caram, “Documentos de la revolución cubana, 1965”, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2013, p. 223

“O açúcar constitui o traço dominante em nossa economia, o que nos concede a maior parte dos recursos exportáveis que utilizamos no comércio internacional."

31. Giuseppe Schiavone, “El Consejo de Ayuda Mutua Económica y la integración socialista”. Disponível em:

32. José Luiz Gutierrez, op. cit., p.139

33. O texto “Sobre o Imposto em Espécie (O Significado da Nova Política e as Suas Condições)”, de Lenin, escrito em 21 de abril de 1921, ilustra bem a situação:

“Os camponeses “pobres” (proletários e semiproletários) transformaram-se, num grande número de casos, em camponeses médios. Em consequência disso o “elemento” pequeno-burguês, pequeno-proprietário, reforçou-se. E a guerra civil de 1918-1920 aumentou extraordinariamente a ruína do país, retardou a restauração das suas forças produtivas, dessangrando sobretudo, precisamente, o proletariado. A isso há que acrescentar a má colheita de 1920, a falta de forragens, as epizootias, o que retardou mais ainda a restauração dos transportes e da indústria, o que se repercutiu, por exemplo, no transporte da lenha, nosso principal combustível, efetuado com os cavalos dos camponeses.

Como resultado, a situação política na Primavera de 1921 era tal que se tornaram urgentemente necessárias medidas imediatas, decididas e extraordinárias para melhorar a situação do campesinato e elevar as suas forças produtivas.”

34. Ibid. O trecho destacado foi realçado por nós.

O desenvolvimento da pequena economia é um desenvolvimento pequeno-burguês, é um desenvolvimento capitalista, uma vez que existe a troca; esta é uma verdade indiscutível, uma verdade elementar da economia política, confirmada, além disso, pela experiência cotidiana e pela observação corrente.

Que política pode o proletariado socialista realizar perante a existência de tal realidade econômica? Dar ao pequeno camponês todos os produtos da produção das grandes fábricas socialistas de que ele necessita em troca dos cereais e das matérias-primas? Esta seria a política mais desejável, a mais “justa”, e já a iniciamos. Mas não podemos dar-lhes todos os produtos, ainda estamos longe disso e não poderemos fazê-lo tão cedo, pelo menos não poderemos fazê-lo enquanto não tivermos terminado os trabalhos da primeira fase da eletrificação de todo o país. Como atuar então? Ou tentar proibir, bloquear por completo todo o desenvolvimento da troca privada, não estatal, isto é, do comércio, isto é, do capitalismo, inevitável com a existência de milhões de pequenos produtores. Esta política seria absurda e suicida para o partido que a experimentasse. Absurda, porque esta política é economicamente impossível; suicida, porque os partidos que experimentassem semelhante política sofreriam inevitavelmente um fracasso. Mas é preciso reconhecer que alguns comunistas pecaram por “pensamentos, palavras e obras”, caindo precisamente nesta política. Procuraremos corrigir esses erros. É absolutamente necessário corrigi-los, pois doutro modo correremos um grande risco.”

35. Em 1968 o “cuentaproprismo” (microempresa e trabalho autônomo) é ilegalizado em Cuba, sendo, também, uma medida política estratégica.

36. V.I. Lénine, “Lenin, obras escolhidas em três tomos”, 3º tomo, Editora Alfa-Omega, São Paulo, 2004,VIII Congresso do PCR (b)”, (18-23 de março de 1919), p. 89

37. Encuentro con Fidel, Oficina de Publicaciones del Consejo de Estado, la Habana, 1987. Entrevista realizada por Gianni Miná, p. 178-179


Equipe do blog Fuzil contra Fuzil


Nenhum comentário:

Postar um comentário