domingo, 22 de maio de 2016

Che Guevara - Pronunciamento ao Conselho Interamericano de Estudos Sociais - 8 de agosto de 1961) - Parte I

Contexto: "Entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961, reuniu-se em Punta del Este - URU, uma reunião do CIES para debater a Aliança para o Progresso, um programa de assistência ao desenvolvimento da América Latina visando a contenção do comunismo na região. A figura de maior destaque desta reunião foi Ernesto Che Guevara. ."*



Cuba não admite que a economia seja separada da política

"Senhor Presidente, senhores delegados: 

Como todas as delegações, devemos iniciar com um agradecimento ao governo e ao povo do Uruguai pelo cordial acolhimento que temos recebido nesta visita.

Gostaria também de agradecer pessoalmente ao senhor Presidente da assembleia pelo presente que nos fez das obras completas de Rodó [1], assim como explicar-lhe que não iniciamos esta exposição com uma citação desse grande americano por dois motivos. O primeiro é que voltaremos a Ariel [2] depois de muitos anos para procurar algo que representará, no momento atual, as ideias de alguém que mais do que uruguaio é nosso, americano, americano do rio Bravo em direção ao sul. [3]

E não o trouxe porque Rodó manifesta em todo seu Ariel a luta violenta e as contradições dos povos latino-americanos contra a nação que já faz cinquenta anos também está interferindo em nossa economia e em nossa liberdade política.

E a segunda razão, senhor Presidente, é que o presidente de uma das delegações que aqui se encontra nos deu de presente uma citação de Martí [4] para iniciar sua intervenção.

Responderemos, pois, ao Martí com Martí, mas com o Martí anti-imperialista e anti-feudal, que morreu em face às balas espanholas, lutando pela liberdade da sua pátria e tratando de impedir com a liberdade de Cuba que os Estados Unidos caíssem sobre a América Latina, como dissera em uma de suas últimas cartas.

Naquela Conferência Monetária Internacional, que o senhor presidente do banco recordou, falando dos 70 anos de espera do Banco Interamericano em sua exposição inaugural, dizia Martí:

“"Aquele que fala em união econômica, fala em união política. O povo que compra, manda. O povo que vende, serve. É preciso equilibrar o comércio para garantir a liberdade. O povo que quer morrer vende a apenas um povo, e o que quer salvar-se vende a mais do que um. O influxo excessivo de um país no comércio de outro se transforma em influxo político. A política é obra dos homens, que condicionam seus sentimentos a seus interesses ou sacrificam parte de seus interesses em nome de seus sentimentos. Quando um povo forte lhe dá de comer a outro, serve-se dele. Quando um povo forte quer combater outro, compele à aliança e a que lhe sirvam os que dele precisam. (...) O povo que quiser ser livre, que seja livre em seus negócios. Distribua seus negócios entre países igualmente fortes. Se há de preferir algum deles, prefira o de que menos precise. (...) Nem uniões da América contra a Europa, nem com a Europa contra um povo da América. A situação geográfica de viver em conjunto na América não obriga, a não ser na mente de algum candidato ou algum secundarista, à existência de unidade política. O comércio caminha pelas vertentes da terra e da água e em busca de quem tem algo para por ele trocar, seja monarquia ou república. A união com o mundo e não com parte dele; não com uma parte dele contra outra. Se algum ofício possui a família das repúblicas da América, não é o de partir de sobre alguma delas contra as repúblicas futuras.”" 

Esse era Martí faz 70 anos, senhor Presidente.

Pois bem. Cumprindo o dever elementar de evocação e retribuindo a gentileza ao senhor delegado que a fizera para nós anteriormente, passamos à parte fundamental de nossa intervenção, à análise de por que estamos aqui, participando da conferência. E devo dizer, senhor Presidente, que discordo, em nome de Cuba, de quase todas as afirmações que foram feitas, mesmo não sabendo se de todos os pensamentos íntimos de cada um.

Devo dizer que Cuba interpreta que esta é uma conferência política, que Cuba não admite que a economia seja separada da política e que compreende que caminham constantemente em conjunto. Por isso não é possível que haja técnicos que falem de técnicas quando está em jogo o destino dos povos. E vou explicar, além disso, o porquê desta ser um uma conferência política, porque todas as conferências econômicas são políticas; mas, esta é sobretudo política porque é concebida contra Cuba e é concebida contra o exemplo que Cuba representa em todo o continente americano. 

E se não é assim, no dia 10, no Forte Amador, zona do Canal, o general Becker, enquanto instrui uma série de militares latino-americanos na arte de reprimir os povos, fala da Conferência Técnica de Montevidéu e diz que é preciso ajudá-la. Mas isso não é nada; na mensagem inaugural de 5 de agosto , o presidente Kennedy afirmou:

“"Os senhores, os participantes desta conferência, atravessam um momento histórico na vida deste hemisfério. Esta reunião é mais do que uma discussão de temas econômicos ou uma conferência técnica sobre o desenvolvimento: constitui, na realidade, uma demonstração da capacidade das nações livres para resolver os problemas materiais e humanos de todo o mundo.”"

Eu poderia seguir com a fala do senhor Primeiro Ministro do Peru, na qual se refere a temas políticos também, mas, para não cansar os senhores delegados, já que prevejo que minha intervenção será um tanto quanto longa, irei referir-me a algumas afirmações feitas pelos técnicos, aos quais colocamos as devidas vírgulas, do ponto V de nossas pautas. Na página 2, no final, como conclusão definitiva, está escrito: “"estabelecer, no plano hemisférico e nacional, procedimentos regulares de consulta com os comitês assessores sindicais, com o objetivo de que possam cumprir um papel influente na formulação política dos programas que se aprovam na Reunião Extraordinária.”"

E para reafirmar o que digo, para não fique nenhuma dúvida quanto ao meu direito a falar de política, que é o que penso fazer, em nome do governo de Cuba, uma citação da página 7 desse mesmo informe do ponto V em discussão:

"“A demora em aceitar o dever incumbido aos meios de informação democrática, com o fim de defender os valores essenciais de nossa civilização, sem fraquejar nem compromisso de ordem material, significaria um dano irreparável para a sociedade democrática e o perigo iminente da desaparição das liberdades de que hoje gozam, como ocorreu em Cuba .– Cuba, com todas as letras , onde hoje apenas existem meios de imprensa, rádio, televisão e cinema controlados conforme a ordem absoluta do Governo.”"

Quer dizer, senhores delegados, que no informe a ser discutido se julga Cuba a partir do ponto de vista político: pois bem, a partir o ponto de vista político Cuba dirá todas as suas verdades e, além disso, a partir do ponto de vista econômico também.

Estamos de acordo em apenas uma coisa com o informe do ponto V dos senhores técnicos, com apenas uma frase, que define a situação atual: “uma nova etapa começa nas relações entre os povos da América”, diz o informe e é correto. Nada mais do que essa nova etapa começa sob a luz de Cuba, Território Livre da América, e esta Conferência e o tratamento especial que tem recebido todas as delegações e os pontos positivos que sejam aprovados possuem todos o nome de Cuba, gostem ou não gostem disso os beneficiários, pois houve uma transformação qualitativa na América, que é que pode um dia levantar-se em armas, destruir um exército opressor, implantar um novo exército popular, colocar-se diante do monstro invencível, esperar o ataque do monstro e derrotá-lo também. E isso é algo novo na América, senhores: isso é o que o faz falar esta linguagem nova e que as relações se façam mais fáceis entre todos, menos, naturalmente, entre os dois grandes rivais desta Conferência.

Cuba, neste momento, não pode sequer falar apenas da América isoladamente. Cuba é parte de um mundo que está em tensão, angustiado, porque não sabe se uma das partes – a mais fraca ou a mais agressiva –, cometerá o erro burro de desencadear um conflito que seria necessariamente tolo. E Cuba está atenta, senhores delegados, pois sabe que o imperialismo sucumbiria envolto em suas próprias chamas, mas que Cuba também iria sofrer em suas carnes o preço da derrota do imperialismo, e espera que esta ocorra por outros meios. Cuba aspira a que seus filhos vejam um futuro melhor e a não ter que cobrar o preço da vitória às custas de milhões de seres humanos destruídos pela metralhadora atômica.

A situação está tensa no mundo. Estamos aqui reunidos não apenas por Cuba, longe disso. O imperialismo precisa fortalecer sua retaguarda, já que a batalha está por todos os lados, em um momento de profunda tensão. 

A União Soviética reafirmou sua decisão de assinar a paz em Berlim, e o presidente Kennedy anunciou que pode ir até a guerra por Berlim. Mas não há apenas Berlim, não há apenas Cuba: há o Laos, o Congo, por outros lados, onde Lumumba foi assassinado pelo imperialismo [5]; há o Vietnã dividido, há a Coreia dividida, a ilha Formosa [6] nas mãos da quadrilha de Chiang Kai-Chek, a Argélia sangrada, que agora pretendem dividi-a também, e a Tunísia, cuja população foi metralhada no outro dia por cometer o “crime” de querer reivindicar seu território. 

Assim é o mundo hoje, senhores delegados, e é assim que participamos nesta conferência para que os povos caminhem em direção a um futuro feliz, de desenvolvimento harmônico, ou que se convertam em apêndices do imperialismo na preparação de uma nova e terrível guerra, ou, se não, também que se mutilem em lutas internas quando os povos – como quase todos vocês o anunciaram – cansados de esperar, cansados de serem enganados mais uma vez, iniciem o caminho que Cuba uma vez iniciou; o de tomar as armas, o de lutar dentro do território, o de tirar-lhe armas ao exército inimigo que representa a reação e o de destruir, até seus fundamentos, toda uma ordem social que está construída para explorar o povo.

A história da Revolução Cubana é curta em anos, senhor Presidente, e rica em feitos positivos, e rica também em conhecer a amargura das agressões. Simplesmente faremos alguns apontamentos para que se entenda com claridade que há uma longa corrente que nos faz desembocar aqui.

Em outubro de 1959, recém tinha sido feita a Reforma Agrária como medida econômica fundamental do Governo Revolucionário. Aviões piratas, que partiam desde os Estados Unidos, voaram sobre o território de Havana e, como consequência dos próprios projéteis que lançaram, mais do que o fogo de nossas baterias antiaéreas, houve duas mortes e uma centena de feridos. Logo, ocorre o incêndio dos campos de cana, que é uma agressão econômica, uma agressão a nossa riqueza, sendo negada pelos Estados Unidos até que é derrubado um avião – com piloto e tudo – e demonstrou-se, indiscutivelmente, a procedência dessas aeronaves piratas. Dessa vez, o governo norte-americano teve a gentileza de pedir desculpas. Foi bombardeado, também, por essas aeronaves, o central canavieiro Espanha, em fevereiro de 1960.

Em março desse mesmo ano, o navio La Coubre, que trazia armas e munições da Bélgica, explodiu nos portos de Havana, em um acidente que os técnicos catalogaram como sendo internacional, e que produziu 100 mortos.

Em maio de 1960, o conflito com o imperialismo fez-se frontal e agudo. As companhias de petróleo que operavam em Cuba, invocando o direito da força e desdenhando as leis da república, que especificavam de forma clara suas obrigações, negaram-se a processar o petróleo que havíamos comprado na União Soviética, no uso de nosso livre direito a comercializar com o mundo inteiro e não com uma parte dele, como dizia Martí.

Todos sabem como respondeu a União Soviética, mandando-nos, com um verdadeiro esforço, centenas de embarcações para transportar 3.600.000 toneladas anuais – o total de nossa importação de petróleo não refinado, e manter funcionando nossa vida interna, nossas fábricas, enfim, todo o aparelho industrial que é movido hoje a partir do petróleo.
Em julho de 1960 ocorre a agressão econômica contra o açúcar cubano, que alguns governos não viram ainda. As contradições se agravam e ocorre a reunião da OEA na Costa Rica, em agosto de 1960. Ali – em agosto de 1960, repito , é declarado que condena-se... Para dizê-lo em termos exatos: "“condena-se energicamente a intervenção, ainda quando seja condicionada, de uma potência extracontinental em assuntos das repúblicas americanas, e declara-se que a aceitação de uma ameaça de intervenção extracontinental por parte de um Estado americano põe em perigo a solidariedade e a segurança americanas, o que obriga a Organização dos Estados Americanos a desaprová-la e repudiá-la com a mesma energia.”"

Por assim dizer, os países irmãos da América, reunidos na Costa Rica, nos negaram o direito de que nos defendessem. É uma das mais curiosas negociações que já foram produzidas na história do direito internacional. Naturalmente que nosso povo é um pouco desobediente diante da voz das assembleias e reuniu-se na assembleia de Havana aprovando, por unanimidade – mais de um milhão de mãos levantadas ao céu, um sexto da população total do país –, a declaração que foi denominada Declaração de Havana [7], na qual, em alguns de seus pontos, expressa-se:  

"A Assembleia Geral Nacional do Povo reafirma" e está certa de fazê-lo como expressão de uma opinião comum aos povos da América Latina –, que "a democracia não é compatível com a oligarquia financeira, com a existência da discriminação do negro e os desmandos do Ku Klux Klan, com a perseguição que privou de seus cargos cientistas como [Robert Julius] Oppenheimer, que impediu durante anos que o mundo escutasse a voz maravilhosa de Paul Robeson, preso em seu próprio país, que levou à morte, sob o protesto e o espanto do mundo inteiro e a pesar do apelo de governantes de diversos países e do Papa Pío XII, os esposos Rosenberg. "

"A Assembleia Geral Nacional do Povo de Cuba expressa a convicção cubana de que a democracia não pode consistir somente no exercício de um voto eleitoral que quase sempre é fictício e está condicionado por latifundiários e políticos profissionais, mas sim no direito dos cidadãos de decidir, como agora o faz esta assembleia do povo, seus próprios destinos. A democracia, além disso, só existirá na América Latina quando os povos sejam realmente livres para escolher, quando os humildes não sejam limitados pela fome e pela desigualdade social, pelo analfabetismo e pelos sistemas jurídicos, à mais danosa impotência.”" 

Além disso, naquele momento “"A Assembleia Geral Nacional do Povo de Cuba, condena, em suma, a exploração do homem pelo homem."” 

Aquela foi uma declaração de nosso povo, feita diante da face do mundo, para demonstrar nossa decisão de defender com as armas, com o sangue e com a vida, nossa liberdade e nosso direito a dirigir os destinos do país na forma que nosso povo considerou más conveniente. 

Vieram depois muitas escaramuças e batalhas verbais às vezes, com os acontecimentos, outras, até que em dezembro de 1960 a cota açucareira cubana no mercado americano foi definitivamente cortada. A União Soviética respondeu na forma que os senhores conhecem, outros países socialistas também assinaram contratos para que fossem vendidas em todo o campo socialista 4 milhões de toneladas, com um preço preferencial de quatro centavos, o que, naturalmente, salvou a situação de Cuba, que é até hoje tão monoprodutora, desgraçadamente, como a maioria dos povos da América, e tão dependente de um só mercado, de um só produto– "neste momento", como o são hoje os demais países irmãos. 

Parecia que o presidente Kennedy inaugurava a nova época de que tanto se tem falado, e a pesar de que também a luta verbal tinha sido dura entre o presidente Kennedy e o Primeiro Ministro de nosso governo, esperávamos que as coisas melhorassem. O presidente Kennedy pronunciou um discurso no que se revelavam claramente uma serie de atitudes a serem tomadas na América, mas parecia anunciar ao mundo que o caso de Cuba devia ser considerado como algo já cristalizado. 

Nós estávamos mobilizados naquela época, depois do discurso de Kennedy, e no dia seguinte ordenou-se a desmobilização. Desgraçadamente, no dia 13 de março de 1961, o presidente Kennedy falava da Aliança para o Progresso [8]. Houve nesse mesmo dia, além disso, um ataque pirata a nossa refinaria em Santiago de Cuba, colocando em perigo as instalações e levando a vida de um de seus defensores. Estávamos, pois, diante de uma situação de fato. 

Naquele discurso, que não tenho duvidas de que será memorável, Kennedy falava também que esperava que os povos de Cuba e da República Dominicana, pelos quais ele manifestava uma grande simpatia, pudessem integrar-se no seio das nações livres. Um mês depois, ocorria o de Playa Girón, e poucos dias depois era assassinado misteriosamente o presidente Trujillo [9]. Nós sempre fomos inimigos do presidente Trujillo, simplesmente estabelecemos o fato cru, e que não foi esclarecido de forma alguma até hoje. 

Depois, estabeleceu-se uma verdadeira obra prima de beligerância e ingenuidade política, que passou a ser chamada “"Livro Branco"” de acordo com as revistas que tanto falam dos Estados Unidos, até provocar a ira do presidente Kennedy. Seu autor é um de seus notáveis assessores da delegação norte-americana, que está hoje conosco. É uma acusação cheia de tergiversações sobre a realidade cubana, que estava concebida para a preparação já encaminhada. 

“"O regime de Castro representa um perigo para a autêntica revolução da América...”", porque a palavra revolução também necessita, como dizia algum dos membros da presidência, limpar os fundos de vez em quando. 

“"O regime de Castro é resistente em negociar amistosamente..."”, a pesar de que muitas vezes dissemos que sentaríamos em pé de igualdade para discutir nossos problemas com os Estados Unidos, e aproveito a oportunidade agora, em nome de meu governo, senhor Presidente, para afirmar, mais uma vez, que Cuba está disposta a sentar e discutir em pé de igualdade tudo o que a delegação dos Estados Unidos queira discutir, desde que sobre o princípio estrito de que não haja condições prévias. Ou seja, nossa posição é claríssima a esse respeito. 

Se chamava, no "“Livro Branco"”, o povo de Cuba à subversão e à revolução “"contra o regime de Castro”", mas, entretanto, no dia 13 de abril, o presidente Kennedy, mais uma vez, manifestava-se e afirmava categoricamente que não invadiria Cuba e que as forças armadas dos Estados Unidos não interfeririam nunca nos assuntos internos de Cuba. Dois dias depois, aviões desconhecidos bombardeavam nossos aeroportos e reduziam a cinzas a maior parte de nossa força aérea, ultrapassada, remanescente do que haviam deixado os batistianos em sua fuga. 

O senhor [Adlai] Stevenson, no Conselho de Segurança, deu enfática certeza de que eram pilotos cubanos, de nossa força aérea, “"descontentes com o regime de Castro"”, os que tinham cometido tal coisa e afirmou ter conversado com eles. 

No dia 19 de abril ocorre a fracassada invasão, na qual nosso povo inteiro, compacto em pé de guerra, demostrou mais uma vez que há forças maiores que a força indiscriminada das armas, que há valores maiores que os valores do dinheiro, e se lançou em massa pelas estreitíssimas ruelas que levavam ao campo de batalha, sendo massacrados em seu caminho pela superioridade aérea inimiga. Nove pilotos cubanos foram os heróis de aquela jornada, com as velhas máquinas. Dois deles deram suas vidas; sete são testemunhas excepcionais do triunfo das armas da liberdade. 

Já chega de Playa Girón, para não falar mais nada sobre isto, porque {a confesión de parte relevo de pruebas” [10], senhores delegados, o presidente Kennedy tomou para si a responsabilidade total da agressão. E, além disso, talvez nesse momento não se lembrou das palavras que havia pronunciado poucos dias antes. 

Poderíamos pensar nós que havia acabado a história das agressões. Como dizem os jornalistas, irei contar-lhes uma notícia quente. No dia 26 de julho deste ano, grupos contrarrevolucionários armados na Base Naval de Guantánamo iriam esperar o comandante Raúl Castro em dois lugares estratégicos, para assassiná-lo. O plano era inteligente e macabro. Atirariam no comandante Raúl Castro enquanto ia pela estrada, de sua casa à manifestação com a qual celebramos nossa data revolucionária. Se fracassassem, dinamitariam a base, ou melhor dizendo, fariam explodir as bases já dinamitadas do palco de onde presidiria nosso companheiro Raúl Castro essa manifestação patriótica. E poucas horas depois, senhores delegados, morteiros norte-americanos, desde o território cubano, começariam a fazer disparos sobre a Base de Guantánamo. O mundo inteiro, então, teria uma explicação clara para a coisa, os cubanos, exasperados, porque em suas rixas particulares "um desses “comunistas que existem lá"” foi assassinado, começavam a atacar a Base Naval de Guantánamo, e os pobres Estados Unidos não teriam alternativa a não ser defender-se. 

Esse era o plano, que nossas forças de segurança, muito mais eficazes do que era possível supor, descobriram faz alguns dias. 

Pois bem. Por tudo isto que relatei é por que considero que a Revolução cubana não pode vir a esta assembleia de ilustres técnicos a falar de coisas técnicas. Eu sei que os senhores pensam que além disso é porque não sabem, e talvez tenham razão. Entretanto, o fundamental é que a política e os acontecimentos, tão teimosos que constantemente estão presentes em nossa situação, nos impedem de vir falar de números ou analisar as perfeições dos técnicos do CIES. 

Há uma série de problemas políticos que estão circulando. Um deles é político-econômico, é o dos tratores. Quinhentos tratores não é um valor de troca. Quinhentos tratores é o estimado pelo nosso Governo que pode permitir-lhe reparar os danos materiais que causaram os 1200 mercenários. Não pagam nem uma vida, porque as vidas de nossos cidadãos não estamos acostumados a medi-las em dólares ou em equipamentos de qualquer tipo. E muito menos a vida das crianças que morreram em Playa Girón, das mulheres que morreram em Playa Girón. 

Mas nós avisamos que se os senhores consideram uma transação odiosa do tempo da pirataria, o fato de trocar-se seres humanos – -a quem nós denominamos vermes- –, por tratores, poderíamos fazer a transação de seres humanos por seres humanos. Comentamos aos senhores dos Estados Unidos, lhes lembrávamos do grande patriota Albizu Campos [11], já moribundo depois de anos e anos estando em uma masmorra do império, e lhes oferecemos o que quisessem pela liberdade de Albizu Campos; lembramos aos países da América que tivessem presos políticos em suas prisões que poderíamos fazer a troca, ninguém respondeu. 

Naturalmente, nós não podemos forçar essa troca. Está, simplesmente, à disposição dos que pensam que a liberdade dos "“valorosos"” contrarrevolucionários cubanos "–o único exército do mundo que se rendeu completamente, quase sem baixas"–, quem pense que esses sujeitos devem estar em liberdade, pois que deixe em liberdade seus presos políticos, e toda América estará com suas prisões resplandecentes, ou, pelo menos, com suas prisões políticas sem preocupações. 

Há também um outro problema, também de índole político-econômica. Ocorre, senhor Presidente, que nossa frota aérea de transporte está ficando, avião por avião, nos Estados Unidos. O procedimento é simples. Sobem algumas damas com armas ocultas nas roupas, as dão aos seus cúmplices, os cúmplices assassinam o guardião, colocam a pistola na cabeça do piloto, o piloto ruma em direção a Miami, e uma companhia, legalmente, evidentemente – "pois nos Estados Unidos tudo é feito legalmente" –, estabelece um recurso por dívidas contra o Estado cubano e então o avião é confiscado. 

Entretanto, ocorre que houve um dos tantos cubanos patriotas – "além disso houve um norte-americano patriota, mas esse não é nosso"– que andava por aí, e ele sozinho, sem que ninguém lhe dissesse nada, decidiu superar os roubadores de bimotores, e trouxe às praias cubanas um quadrimotor lindo. Naturalmente, nós não vamos utilizar esse quadrimotor, que não é nosso. A propriedade privada nós a respeitamos, mas exigimos o direito de que nos seja respeitada, senhores; exigimos o direito de que não haja mais farsas; o direito de que haja órgãos americanos que possam falar e dizer-lhes aos Estados Unidos: “Senhores, os senhores estão cometendo uma vulgar injustiça; não se pode tirar os aviões de um Estado, mesmo que esteja contra os senhores; esses aviões não são seus, devolvam esses aviões, ou serão sancionados.” 

Naturalmente, sabemos que, desgraçadamente, não há organismo interamericano que tenha essa força. Apelamos, entretanto, neste augusto conclave, ao sentimento de equidade e justiça da delegação dos Estados Unidos, para que seja normalizada a situação dos roubos sucessivos de aviões. 

O Presidente do conselho interrompe o delegado de Cuba

Senhor Presidente: "A presidência observa que não se pode fazer nenhum tipo de manifestação." 

Continua



Notas:

* Leonardo da Rocha Botega, em "A VISITA DO REVOLUCIONÁRIO ERRANTE: CHE GUEVARA NA ARGENTINA E NO BRASIL"


[1] José Enrique Rodó, escritor uruguaio que pregava a formação de uma cultura independente da hegemonia do imperialismo norte-americano para o continente latino-americano.

[2] Obra de Rodó na qual apresenta suas concepções.

[3] O rio Bravo faz parte da fronteira entre México e Estados Unidos. Che refere-se aqui ao continente latino-americano. 

[4] Um dos principais líderes cubanos nas guerras de independência contra a Espanha.

[5] Patrice Lumumba foi um dos principais líderes anti-imperialistas do Congo, na luta contra o colonialismo Belga. Foi capturado, torturado e assassinado em janeiro de 1961, após um golpe de Estado liderado pelo coronel Joseph Mobutu. Em seu assassinato e no golpe de Estado houve participação dos Estados Unidos e da Bélgica, enquanto Lumumba tratava de fugir para o leste do país. 

[6] Atual Taiwan.

[7] Posteriormente, veio a chamar-se “Primeira Declaração de Havana”.

[8] Programa de “ajuda” mútua desenvolvido pelos Estados Unidos na América Latina, cujo conteúdo, na prática, era uma forma de buscar contrapor a influência da Revolução Cubana no continente.

[9] Então presidente da República Dominicana.

[10] Expressão em espanhol que quer dizer que, quando alguém confessa um ato ou um crime, o assunto está superado.

[11] Albizu Campos é considerado o maior líder da independência de Porto Rico, preso diversas vezes por essa atividade. Foi preso por última vez em 1954, sofrendo um derrame em 1956. Afirmava que havia sido objeto de experiências com radiação enquanto estava preso. O doutor Orlando Damuy, então presidente da Associação de Câncer de Cuba viajou à ilha e confirmou que queimaduras presentes no corpo de Albizu eram devido a radiação. Em 1994, durante o governo de Bill Clinton, o Departamento de Energia norte-americano admitiu que havia efetivamente realizado testes com radiação em seres humanos durante as décadas de 50 a 70. Solto em novembro 1964, Albizu morreu em abril de 1965. Em seu enterro havia 75 mil pessoas.

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