segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Che Guevara - Segundo Seminário Econômico de Solidariedade Afroasiática - 24 de fevereiro de 1965 - Parte I

Em 24 de fevereiro de 1965 na Argélia, o Comandante Ernesto "Che" Guevara pronuncia seu último discurso em um evento internacional. Foi no Segundo Seminário Econômico de Solidariedade Afroasiática. 
 
Guevara e Ahmed Ben Bella na Argélia
Cuba chega a esta Conferência levantando sua voz em representação aos povos da América Latina(1), e, como em outras oportunidades enfatizamos, enquanto um pais subdesenvolvido, que ao mesmo tempo constrói o socialismo. Não é por acaso que nossa representação busca mostrar sua opinião entre países da África(2) e Ásia. Um objetivo comum, a derrota do imperialismo, nos une em nosso marcha até o futuro: um passado comum de luta contra o mesmo inimigo nós mantem unidos ao longo do caminho.

    Essa é uma assembleia dos povos em luta: que se desenvolve em duas frentes de igual importância e exige todos os nossos esforços. A luta contra o imperialismo, pela busca da liberdade aos entraves coloniais ou neocoloniais, que se conquista pelas armas politicas, as armas de fogo e as combinação de ambas, não estão desligadas das lutas contra o atraso e a pobreza, ambas são etapas de um mesmo caminho que conduz à criação de uma sociedade nova, rica e justa. É fundamental conquistar o poder politico e eliminar as classes opressoras, entretanto, depois é necessário confrontar a segunda etapa da luta, que revela impasses de maiores dificuldades que a etapa anterior.

    Desde que o capital monopolista alastrou-se e dominou o mundo, mantém na pobreza a maioria da humanidade, enquanto divide os lucros em um grupo de países mais fortes. O nível de vida nesses países se estrutura na miséria dos nossos países; para elevar o nível de vida dos povos subdesenvolvidos temos que lutar contra o imperialismo. E cada vez que um país se destaca da arvore imperialista, não só vence uma batalha parcial contra o inimigo fundamental, como contribui para o seu enfraquecimento real dando um passo para a vitória final.

Não existem fronteiras nessa luta à morte, não podemos ser indiferentes frente ao que ocorre em qualquer parte do mundo, pois uma vitória de qualquer país sobre o imperialismo é uma vitória nossa, assim como a derrota de uma nação qualquer é uma derrota para todos. O exercício do internacionalismo proletário é um dever dos povos que lutam por assegurar um futuro melhor. Além disso, é uma necessidade inevitável. Se o inimigo imperialista, norte-americano ou outro qualquer, desenvolve seus ataques contra os povos subdesenvolvidos e os países socialistas, uma lógica elementar determina a necessidade da aliança entre os povos subdesenvolvidos e os países socialistas(3), porque se não houver nenhum outro fator de união, o inimigo comum deve ser constituí-lo.

Claro, essas conexões não podem ser feitas de forma espontânea, sem discussões, sem aliança antecedente, dolorosa, às vezes.
Cada vez que um país se liberta, dizemos ser uma derrota do sistema imperialista mundial. Entretanto, devemos concordar que o engajamento não acaba com o mero direito de se proclamar uma independência ou conquistar uma vitória pelas armas em uma revolução, mas acaba quando dominação econômica imperialista deixa de ser exercida sobre o povo. Portanto, é interesse fundamental dos países socialistas que se desenvolva efetivamente esse engajamento, sendo nosso dever internacional, dever que se baseia na ideologia que nos dirige, contribuir com nossos esforços para que a libertação se faça o mais rápida e profundamente possível.
Não pode existir socialismo se não se operar na consciência uma mudança que seja capaz de provocar uma nova atitude fraternal pela humanidade, tanto enquanto caráter individual, que se propõem a construir o socialismo, como de caráter mundial com relação a todos os povos que sofrem da opressão imperialista.
Acreditamos que com esse espirito devemos nos colocar frente a responsabilidade de ajudar os países dependentes e que não se deve mais falar de desenvolvimento de comércio de benefício mútuo baseado nos preceitos da lei do valor e nas relações internacionais de troca desigual, produtos, justamente, da lei de valor, impõem aos países atrasados. (4)
Como pode significar "beneficio mútuo" vender a preços do mercado mundial as matérias primas que custam o suor e sofrimento sem limites dos paises atrasados e comprar a preços de mercado mundial as máquinas produzidas nas grandes fábricas automatizadas do presente?
Se estabelecemos esse tipo de relação entre as nações, devemos concordar, que de certa forma os países socialistas de certa maneira são cúmplices da exploração imperialista. Pode-se argumentar que a troca com os países subdesenvolvidos constituem uma parte insignificante do comercio exterior desses países. Isso é uma grande verdade, porém não elimina o caráter imoral dessa troca.
Os países socialistas tem o dever moral de eliminar suas relações com os países exploradores do Ocidente. O fato de que seja hoje pequeno o comércio não quer dizer nada: nos anos 50 cuba vendia, ocasionalmente, açúcar a algum pais do bloco socialista, sobretudo através de comerciantes ingleses e de outras nacionalidades. Hoje, 80% de seu comércio se desenvolve nessa área, todos seus abastecimentos vitais vem do campo socialista, e, de fato, cuba se integrou a esse campo. Não se pode dizer que esse ingresso deu-se apenas por conta do aumento do comércio, nem que tenha aumentado o comércio por conta do fato do rompimento com as velhas estruturas e encarar a forma socialista de desenvolvimento, ambos os extremos se tocam e um e outro se interrelacionam.
Nós não começamos o caminho que terminará no comunismo com todos os passos previstos, como produto lógico de um desenvolvimento ideológico que marchará a um fim determinado; as verdades do socialismo, mas as cruas verdades do imperialismo, foram forjando nosso povo e ensinando a eles o caminho que logo adotaríamos conscientemente. Os povos da África e da Ásia que buscam sua liberdade devem tomar o mesmo caminho, a empreenderão, mais cedo ou mais tarde,  ainda que seu socialismo tome hoje qualquer adjetivo definitório. Não existe outra definição de socialismo válida para nós, que a abolição da exploração do homem pelo homem. Enquanto essa definição não se concretize, se está ainda no período de construção da sociedade socialista, e em vez de se realizar esse fenômeno, a tarefa de superação da exploração se estagna ou, mesmo, retrocede no desenvolvimento socialista, não é valido sequer faler de construção do socialismo. (5)
Temos que preparar as condições para que nossos irmãos entrem direta e conscientemente no caminho da abolição definitiva da exploração, porém não podemos convidá-los a entrar caso sejamos ainda cúmplices da exploração. Se nos perguntarem quais são os métodos para fixar preços equitativos, não poderíamos responder, não conhecemos a magnitude pratica dessa questão, só sabemos que depois das questões politicas, União Soviética e Cuba firmaram acordos vantajosos para nós, onde será possível vender até 5 milhões de toneladas a preço fixo superior ao normal no mercado mundial açucareiro. A Republica Popular da China também mantem esses preços de compra.
Isto é apenas um antecedente, a real tarefa consiste em fixar os preços que permitem seu desenvolvimento. Uma grande mudança de concepção consiste em transformar a ordem das relações internacionais, não deve ser o comércio exterior que direcione a politica, senão o contrario, aquele deve estar subordinado a uma política fraternal entre os povos.
Analisaremos brevemente o problema dos créditos a longo prazo para desenvolver as estruturas básicas da industrias. Frequentemente nos deparamos com que os países beneficiários preparam suas bases industriais desproporcionais a partir de capacidade atual, cujos produtos não se consumirão no território e cujas reservas se comprometerão nesse esforço.
Nossa opinião é de que os investimentos dos Estados socialistas em seus próprios territórios pesam diretamente sobre o orçamento estatal e não se recuperam se não através da utilização dos produtos no processo completo de sua elaboração até chegar ao extremo da manufatura. Nossa proposta é pensar na possibilidade de realizar investimentos desse tipo em países subdesenvolvidos.
Dessa forma se poderia colocar em movimento uma força imensa, subjacente em nossos continentes que vem sendo miseravelmente explorados, porém nunca auxiliados em seu desenvolvimento, e iniciar uma nova etapa da autêntica divisão internacional do trabalho, baseada não na historia do que hoje tornou-se, se não, no futuro, a historia do que pode ser feito.
Os Estados cujo os territórios nos quais se desenvolverão novos investimentos teriam todos seus direitos inerentes baseados em um princípio absoluto da propriedade soberana sobre os mesmos, sem que haja pagamento ou crédito algum, acabando por obrigar os possuidores a fornecer determinada quantidade de seus produtos aos países investidores a um preço determinado durante certo tempo.
É digno de estudo ainda a questão de financiamento das despesas em que deve incorrer um país que faz tais investimentos. Uma forma de ajuda, que não gera despesas com moedas livremente convertíveis, poderia ser o fornecimento de produtos facilmente vendidos a governos de países subdesenvolvidos, a partir de crédito a longo prazo.
Outro grande problemas que devemos resolver é o de domínio da técnica (6). É bem conhecido por todos a falta de técnicos que sofrem os países em desenvolvimento. Faltam instituições de ensino. Faltam por vezes, a real consciência das nossas necessidades e a decisão de tomar a cabo uma política de desenvolvimento técnico e ideológico que se deveria atribuir como prioridade.
Os países socialistas devem fornecer ajuda para a formação de órgãos de ensino técnico, insistir na importância fundamental disso e fornecer quadros de trabalhadores técnicos que consigam suprimir essa carência atual. Deve-se enfatizar mais sobre este último ponto: os técnicos que vem a nossos países devem ser exemplares. Eles são companheiros que têm de lidar com um ambiente desconhecido muitas vezes hostil à tecnologia, com uma língua diferente e totalmente diferentes hábitos. Os técnicos que irão de enfrentar a difícil tarefa devem ser, acima de tudo comunistas, no sentido mais profundo e nobre da palavra: com esta única qualidade, além de um mínimo de organização e vontade, fará maravilhas.
Sabemos disso porque os países companheiros nos enviaram certo número de técnicos que tem feito mais pelo desenvolvimento de nosso país que dez institutos e tem contribuído para nossa amizade mais do que dez embaixadores ou uma centena de recepções diplomáticas.
O imperialismo foi derrotado em muitas batalhas parciais. Mas é uma força significativa no mundo e não se pode esperar sua derrota final se não através do esforço e sacrifício de todos.
Porém, as medidas propostas não podem ser realizadas de forma unilateral. O desenvolvimento dos paises subdesenvolvidos deve custar aos países socialistas. Concordo, mas também deve colocar em tensão as forças dos países subdesenvolvidos e tomar firmemente o caminho da construção de uma nova sociedade – ponha-se o nome que se queira – onde a máquina, instrumento de trabalho, não seja instrumento de exploração do homem pelo homem. Também não pode reivindicar a confiança dos países socialistas quando se joga no equilíbrio entre o capitalismo e o socialismo e usa ambas as forças como elementos contrapostos para conquistar determinadas vantagens nesta posição.

É importante destacarmos mais uma vez que os meios de produção devem estar preferencialmente nas mãos do Estado, para que gradualmente desapareçam os traços de exploração.
Por outro lado, não se pode deixar que o desenvolvimento ocorra baseado em improvisações, a nova sociedade deve ser planificada. A planificação é uma das leis do socialismo, sem ela o socialismo não existiria. Sem uma correta planificação não se pode existir suficientes garantias de que todos os setores econômicos se relacionem harmoniosamente para que consiga cumprir as demandas exigidas no momento que estamos vivendo. A planificação não é um problema isolado de cada um dos nossos países, pequenos e distorcidos em seu desenvolvimento, possuidores de algumas matérias-primas ou produtores de alguns produtos manufaturados ou semi-manufaturadas, faltando a maioria dos outros(7). Esta deve ter como foco desde o início, uma certa regionalidade a permear as economias dos países e alcançar uma integração sobre a base de um verdadeiro benefício mútuo.
Acreditamos que o caminho atual esta cheio de perigos, perigos que não são inventados ou previstos para o futuro por alguma mente superior, são o resultado da realidade palpável que nos atinge. A luta contra o colonialismo alcançou sua etapas finais, porém atualmente, o status colonial não é senão consequência da dominação imperialista. Enquanto exista imperialismo exercerá sua dominação sobre outros países, por definição, exercerá sua dominação sobre os países, essa dominação se chama hoje neocolonialismo.

Continua
 
Tradução equipe do Fuzil contra Fuzil

   
NOTAS

1. Che Guevara pronunciou seu discurso no Segundo Seminário Econômico de Solidariedade Afroasiática, em 24 de fevereiro de 1965. Estava visitando à África desde dezembro, depois de participar da Assembleia Geral da ONU, em 11 de dezembro de 1964. Nesse momento crucial, Che preparava sua participação no movimento de libertação no Congo, que teve inicio em abril de 1965.

2. Durante a participação na Conferência da Argélia, Che refletiu sobre as relações de Cuba com o Terceiro Mundo. Depois do triunfo da revolução, de junho a setembro, visitou vários países relacionados ao Pacto de Bandung. O Pacto de Bandung foi o precursor do que mais tarde se tornou o Movimento dos Não-Alinhados . No primeiro Seminário sobre Planejamento na Argélia em 16 de Julho de 1963,  Che havia tratado da experiência da Revolução Cubana, explicando que ele havia aceitado o convite de participar para " oferecer apenas uma pequena história do nosso desenvolvimento econômico , os nossos erros e triunfos , que poderiam ser úteis para vocês no futuro próximo ..."

3. Neste discurso Che definiu com muita precisão sua tese revolucionária para o Terceiro Mundo e a integração da luta de libertação nacional com idéias socialistas. Che fez um chamado aos países socialistas, para apoiar de forma incondicional e radical o Terceiro Mundo.

4. Esta definição de intercâmbio desigual partiu de uma profunda analise feita em Genebra em 25 de março de 1964 na Conferência das Nações Unidas sobre Economia e Desenvolvimento no Terceiro Mundo : “Estamos em nosso dever de atrair a atenção dos presentes de que enquanto o statos quo seja mantido e a justiça esteja determinada por poderosos interesses… será difícil eliminar as tensões prevalecentes que colocam em perigo a humanidade.”

5.  Para Che , o significado inerente ao socialismo era superar a exploração como um passo essencial para uma sociedade justa e humana, dando ênfase na necessidade de unidade internacional na luta pelo socialismo. A ideia de Che era que as forças socialistas internacionais pudessem contribuir para o desenvolvimento social e econômico dos povos.

6.  A Participação direta de Che entre 1959-1965 na construção de uma base material e tecnológica para o desenvolvimento da sociedade cubana está intimamente ligada à ideia de criação de um novo homem e uma nova mulher. Esta é uma pergunta que ele constantemente retorna, considerando este um dos dois principais pilares sobre os quais uma nova sociedade poderia ser construída. Esta estratégia foi aplicada não só para resolver problemas imediatos, mas para criar certas estruturas que possibilitassem garantir a Cuba um futuro desenvolvimento científico e tecnológico. Ele foi capaz de desenvolver esta estratégia durante o tempo chefiou o Ministério das Indústrias. Para ler mais sobre este assunto , consulte o seu discurso: " As universidades podem estar cheias de negros, mulatos, operários e camponeses" (1960) e "Juventude Revolucionária" (1964).

7.  Neste esforço para compreender as tarefas na transição para uma economia socialista, Che destacava o papel vital do planejamento econômico, especialmente na construção da economia socialista em um país subdesenvolvido que continha elementos de capitalistas. Esse planejamento é necessário porque representa a primeira tentativa humana de controlar as forças econômicas e caracteriza este período de transição. Ele chama atenção para a inclinação dentro do socialismo para reformas do sistema econômico de alienação de mercado, interesses materiais e da lei do valor. Para contrariar esta tendência, Che defendia a centralização anti- burocrática e planejamento que enriquecem consciência. Sua ideia era usar a consciência e ação organizada como a força fundamental para direcionar o planejamento econômico do socialismo. Para mais informações sobre o assunto, veja o artigo " A importância da abordagem socialista " (1964) .